Vigília do senhor morto
Poema de Cecília Meireles
Teu rosto passava, teu nome corria
por esses lugares do sol e da lua.
Como se contava a tua biografia!
E eu, pela esperança de poder ser tua,
como vim de longe, teimando com a terra,
deixando suspiros para cada rua!
Guerreiro cortado de injúrias de guerra
não trouxe consigo nenhuma ferida
como esta que tenho e que já se não cerra.
Por tanta subida, por tanta descida,
aqui dou contigo, no teu morto leito,
eu, que vim por ti salvando a minha vida!
Fria sombra, apenas, teu rosto perfeito.
Covas de cegueira, teus olhos, apenas.
Muro de silêncio teu tombado peito.
Sangue que tiveste, por perdidas cenas
derramou-se, longe, e é pó do pó sem glória,
preso no destino das coisas terrenas.
Por que serei triste com a minha memória,
diante do teu corpo sem auréolas? Triste
pela minha viagem? pela tua história?
Este é o Senhor Morto - e este, somente, existe.
Noite de vigília, sem mais esperança,
alguma coisa em mim o assiste
que não se vai, que não se cansa.
Fonte: "Obra poética", Editora Nova Aguilar, 1983.
Originalmente publicado em: "Vaga Música", 1942.