A menina avoada


Poema de Manoel de Barros



Foi na fazenda de meu pai antigamente.
Eu teria dois anos; meu irmão, nove.
Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de
goiabada.
A gente ia viajar.
As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:
Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar as rodas se abriam para o lado
de fora.
De forma que o carro se arrastava no chão.
Eu ia pousada dentro do caixote com as perninhas
encolhidas.
Imitava estar viajando.
Meu irmão puxava o caixote por uma corda de embira.
Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.
Eu comandava os bois:
- Puxa, Maravilha!
- Avança, Redomão!
Meu irmão falava que eu tomasse cuidado porque
Redomão era coiceiro.
As cigarras derretiam as tardes com seus cantos.
Meu irmão desejava alcançar logo a cidade -
Porque ele tinha uma namorada lá.
A namorada do meu irmão dava febre no corpo dele.
Isso ele contava.
No caminho, antes, a gente precisava atravessar um
rio inventado.
Na travessia o carro afundou e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.
Sempre a gente só chegava no fim do quintal.
E meu irmão nunca via a namorada dele -
Que diz-que dava febre em seu corpo.



Fonte: "Poesia Completa", Editora Leya, 2010.
Originalmente publicado em: "Exercícios de ser criança", Editora Salamandra, 1999.