Escada

Imagem de Carlos Drummond de Andrade

Poema de Carlos Drummond de Andrade



Na curva desta escada nos amamos,
nesta curva barroca nos perdemos.
        O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te, carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
        ao melhor de nós mesmos,
        deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

        E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
        das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

        Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
        Ai, nada mais restara,
        que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos,
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

        Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
        nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
        rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
        de sua própria ceva,
        escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.



Fonte: "Poesia completa", Editora Nova Aguilar, 2006.
Originalmente publicado em: "Fazendeiro do ar", 1954.