A múmia
Poema de João Cabral de Melo Neto
Na Capelinha da Jaqueira
uma múmia sobrevivera.
A de Bento José da Costa
ou de alguma amante preposta?
Ela não fazia fantasma:
era mais bem alma gorada,
ovo encruado, infermentação,
que nunca pode assombração.
*
Caminho do Campo do América
se ensaiavam dribles em sua pedra.
Se imitavam chutes sem bola
na pedra anônima em que mora.
E fosse de dia ou de noite,
nunca foi de acenar a foice,
nem com gesto armado de morte
acenar-se sequer, de chofre.
*
Na Capelinha da Jaqueira,
a múmia, amiga e companheira,
punha-se acima de quem joga:
nunca envergou a negra toga
ridícula, de juiz de futebol,
de calças curtas como um sol
castrado, já antes do apito
epilético; é Meritíssimo.
*
Talvez porque a múmia era cega?
Nunca ela torceu pelo América.
Também nunca acendemos vela
para que ela, com suas trelas,
driblasse a defesa contrária,
o juiz, e até as arquibancadas,
e entrasse só no gol do Esporte,
num 'gol de chapéu', com a Morte.
Fonte: "A educação pela pedra e depois", Editora Nova Fronteira, 1997.
Originalmente publicado em: "Crime na Calle Relator", 1987.