A viuvinha


Poema de Joaquim Norberto de Sousa Silva



Funebremente gemendo
Estão os sinos nas torres,
A todo o Rio dizendo
Que um cristão se finou;
Foi o ilustre Germano
Que a vida emfim exalou,
E a esposa tao moça e linda,
Mais linda deixara ainda,
Co' o dote que lhe deixou.

Porém ela, inconsolada,
Derrama saudoso pranto,
Geme toda amargurada
A morte do caro bem;
Em vão para consolá-la
Toda a família ai vem;
Ela somente chorando,
No pranto que vai soltando
Alívio seguro tem.

A porta de luto armada
Infunde muita tristeza;
A sala toda enlutada
Esparge em torno pavor;
No meio se eleva a eça
Onde o féretro vão pôr;
E as luzes que o rodeiam
Parece que se arreceiam
Ostentar seu esplendor.

No fundo a cruz se alevanta,
Aonde o Crucificado
Inspira coragem santa
E nos ensina a morrer;
Quadro sublime e tão belo
Para quem ousa descrer,
Que tantos, indiferentes,
E que se confessam crentes,
Sem fé, sem dó ousam ver!

Entre os teus cetins, ó morte,
Descansa pra todo o sempre,
Quem ontem robusto e forte
Prometia assaz viver!
Mas o peixe pela boca
Afinal vem a morrer;
E Germano noite e dia
Estudou gastronomia;
Para a bel prazer viver.

Que petiscos saborosos
Não desfrutou o magano?
Que vinhos tão generosos
Não provou mais duma vez
E após a lauta mesa
Vinha o charuto havanês,
E no dolce far niente
Passava a sesta contente,
Como se fosse holandês!

É verdade que o pescoço
Desapareceu-lhe entre os ombros
Que do suculento emboço
Asinha se arreceou;
Mas a sua obesidade
Jamais limites achou,
E de progresso em progresso
Não quis saber de regresso,
E o homem estourou!

Vem chegando os convidados
Que à linda e bela viúva
Se dirigem consternados
Para lhe os pêsames dar;
"É o caminho de todos,
A nossa hora há de chegar!"
E com a frase cediça
A dor de novo se atiça,
Para a viúva chorar!

Chega a hora : o saimento
Vai caminho do sepulcro;
Oh que tão triste momento!
Reina a dor e a confusão!
Vem escravos, vem escravas
A beijar a fria mão;
E abraçada a esposa ao esposo
Derrama pranto amargoso,
Abre aos ais o coração!

Quer com ele à sepultura
Caminhar, morrer com ele,
Pois tamanha desventura
Não saiba que possa ter
Um termo lá no futuro,
Que nos faz tudo esquecer;
A noite encobre o passado,
Mas o dia abrilhantado
Nos faz o futuro ver...

A mãe, que também por essa
Já passou, contra o seu gosto,
Para arranca-la da eça
Emprega os esforços seus;
Brada, manda e até implora
Em nome do santo Deus,
Mas a filha não entende;
Surda a tudo, a nada atende;
Envolta em seus negros véus.

Afinal, que para tudo
Há remédio cá na terra,
O caso é jeito e estudo,
Sempre o féretro saiu,
Pois que a menina deu tempo
No desmaio em que caiu,
E a si depois tornada
Em furor, desesperada,
Mais e mais então se viu!

A mãe porém que sabia,
Como boa abelha mestra,
Curar-lhe a dor que trazia
Em estado assim tão mau,
Lembrou-se que possuía
Um tal manequim de pau
E lá do olvido o arrancando,
E o pó do tempo espanando,
O vestiu de balandrão.

Depois o foi pôr na cama,
Onde outrora o par amável
Em doce amorosa chama
O frio inverno passou;
A menina que tal vira
Não sei que graça lhe achou
Que para a cama subindo
E logo os braços abrindo
O manequim abraçou.

A mãe que maliciosa
Era como as mais mulheres,
Se bem que mui carinhosa,
De sorrir-se não deixou;
E logo a boa da filha
Por sua vida jurou
Adorar essa figura
Do esposo, que à sepultura
Pra todo o sempre baixou.

"Sim", soluçando disse ela,
"Para lembrar meu marido,
Esta estátua, que é tão bela,
Há de comigo dormir;
Eu quero todas as noites
De meus beijos a cobrir;
Meus afagos e carinhos,
Meus afetos e beijinhos
Só com ela repartir."

"Morreu, mas sua lembrança
Viverá nesta figura,
Que é a sua semelhança
Depois que a morte o feriu,
Depois que pra todo o sempre
O meu coração partiu
Com tantas mágoas saudosas,
Tão cruéis, tão dolorosas,
Quais ninguém nunca sentiu!"

Calou-se. Longo gemido
Do imo do terno peito
Tremulamente saído
Na sua alcova soou;
E inda uma vez e outra
A dura estátua abraçou,
Até que os olhos fechando
E o triste pranto estancando,
Dormindo foi e... roncou!

Sete dias se passaram
Depois que o esposo finou-se,
Visitas lhe não faltaram,
Algumas com intenções;
Que uma rica viuvinha
Faz bater mil corações!...
E Xiquinha tão chorosa,
Não via a chama amorosa
De interesseiras paixões.

Porém na missa que ouvira
Por alma do seu esposo,
É certo que a moça vira
Junto dela ajoelhar
Um moço de bons bigodes
Que julgara militar,
E que enquanto ela rezava
Ele para ela olhava,
Sem co'a missa se importar.

Quem seria? Ela saindo
Da igreja o perdeu de vista,
E para a chácara partindo
Nunca mais sequer o viu;
E ignorando o seu nome
Jamais falar nele ouviu,
Porém sempre o seu retrato
À sua mente tão grato
Fiel se lhe reuniu.

D. Xiquinha no entanto
Pelo seu fiel Germano
Derramava triste pranto,
Triste pranto sem cessar;
Somente dele, só dele
Desejava ouvir falar,
E, ainda que seco e peco,
Não ia sem o boneco
Para a cama a se deitar.

Já muitos que pretendiam
Merecer os seus afetos
E que frustrados se viam
Em seus projetos de amor,
Contra ela começavam
A derramar um rumor...
Rumor que crescendo ia
Tanto quanto lhes crescia
Para eles o rigor.

O tio, homem solteiro,
Destes calvos, que parecem
Um monte em que houve aceiro,
Pretendia a sua mão;
E namorava-lhe a burra
Com verdadeira paixão,
Mas a viúva fingia
Que nada disso entendia,
Com fina penetração.

O homem, porém, que era
Negociante, que estava
Exilante, como a hera
Se o apoio a faltar-lhe vem,
Jurou falar-lhe mais claro,
E como se fosse alguém,
Veio de caso pensado
Com seu recado estudado
Para quem queria bem.

Fora de estilo, batendo,
Teve entrada, e pela sala
Ia com os olhos correndo,
Quando a moça apareceu;
E ele sem mais demora
Para ela se volveu,
E disse muito sabidos
"Para ser vosso marido,
Sobrinha, aqui venha eu."

"O caso é serio; a menina
De se casar necessita,
E se eu cá por minha sina
A vossa mão merecer,
Juro que a vossa fortuna
Em bem pouco há de crescer,
E que felizes, ditosos,
Bem unidos, venturosos,
Havemos nós de viver."

A viuvinha isto ouvindo
Ficou tal qual uma rosa,
Porém depois se sorrindo
Humilde lhe respondeu:
"Para casar com meu tio
Por ventura quem sou eu?
E depois ainda um ano
Não há que o seu bom Germano
Sua sobrinha perdeu."

"É certo", o velho lhe disse
Ocultando que a resposta
Lhe irritava a rabugice,
Pois era de mau humor;
"Não sabeis que por ai
Já há boato e rumor?
Já se fala da menina...
Ah que uma língua ferina
Não poupa seja o que for!"

E não acabava, quando
A mãe da bela viúva
Veio pela sala entrando,
Com aquela afetação
Que sempre tem as viúvas
De mais madura estação,
Que apesar do luto buscam
Enfeites, com que se ofuscam,
Crendo chamar atenção.

"Ora eis ai", diz o velho,
"Quem chega bem a propósito
Para dar o seu conselho,
Que por força há de ser bom;
Pois trato agora (isto é serio)
De ver se me caso com
A tua angélica filha,
Seja embora maravilha
A um velho sem tom nem som.

Franziu a boa da velha
O beiço logo, dizendo:
"Se comigo se aconselha,
Então nunca casará:
A menina passa bem,
Necessidade não há,
E se tornar a casar-se,
Bom é já desenganar-se,
Por meu gosto não será."

Não gostou o bom do tio
Do sermão, e afetando
Mais prudência e sangue frio
Sua conversa mudou;
Era tarde, e até a noite
Risonho se conservou;
Quiz fazer a retirada
Menos má, boa e honrada,
Até que afinal se escamou.

O velho de noite e dia
Pensava no seu projeto,
Mas ao certo não sabia
Como torná-lo real;
Dia e noite visitava
A sobrinha, é natural,
E alguma vez se esquecia
De ir para a casa e dormia
Qual podia, menos mal.

O maligno! Já traçado
Tinha o plano da conquista,
E a vê-lo realizado
Seus esforços envidou;
Sabia bem que a sobrinha
Jamais de dormir deixou
Co'a tal imagem querida
Daquele que em sua vida
Sempre adorá-la buscou.

E teve então a lembrança
De querer substituí-lo,
Pensando que tal mudança
Muito havia de agradar
À namorada sobrinha
Quando visse se animar
Esse pau, essa figura,
Como se da sepultura
Visse o marido voltar.

Uma noite que, entretido
Na conversa se fingiu,
Pela hora surpreendido
Lá se deixara ficar,
Quando viu tudo dormindo
Brandamente a respirar,
Foi direto ao aposento
De quem nem por pensamento
O desejava enxergar.

E à luz da lamparina
Seus olhos... ah! profanaram
Tanta beleza divina
Do corpo formoso seu!
Quase todo descoberto...
Porque o lençol lhe pendeu...
Quase todo descoberto...
Que o velho ali... boquiaberto
Ah! nem mesmo um passo deu!

Consigo mesmo lutava
Sem saber o que fizesse,
Sem saber o que intentava,
Até que o ânimo ganhou,
Voltou em torno do leito
E o boneco lhe tirou,
E do seu negro vestido
Foi o manequim despido,
Que o velho em si o encaixou.

Manso e manso como um gato
Quando prepara o seu bote
Querendo empolgar um rato,
Assim o velho saltou
Sobre o leito da viúva
E então se espreguiçou;
E ela, sem que acordasse,
Sem que em sonho tal pensasse,
Para ele se voltou.

Sem respirar, caladinho;
Sem mover-se, o bom do velho
Estava como um santinho
Com o demo no coração;
E ela sem que acordasse
Lhe lançou a nívea mão;
Mas estranhou a figura
Por mole, quando era dura,
Que sentiu certa impressão.

Acordou e refletindo
Que bem podia ser sonho,
Quis ver se outra vez dormindo
Sonhava com o esposo seu,
E com o duro boneco
Aos abraços se coseu
Porém sentiu-o flexível
E o coração tão sensível
A palpitar percebeu!

Com cabelos eriçados,
Tomada toda de susto,
E os olhos regalados
O boneco examinou;
O velho não se movia
Mas por fim pestanejou;
Então a moça saltando
Da cama e de horror gritando
Todos de casa acordou.

Ouvindo tamanha bulha,
O velho mais que ligeiro,
Como uma rã que mergulha,
Logo e logo escorregou
Para debaixo da cama
Aonde nem mal piou,
Enquanto que toda a gente
Da casa mui diligente
Acudiu, veio e chegou.

"Eu vi-o, vi-o bem vivo
(Diz assustada a viúva),
E em meu estado aflitivo
Pude o ver pestanejar."
"Dormiste, a mãe lhe recorda,
Sem por sua alma rezar,
Por isso ele veio em sonho
Com seu semblante medonho
Essa falta te exprobrar."

"Como, se estava acordada?
Eu não sonhei, eu vi tudo!
Eu não estou enganada,
E portanto bom será
Que o boneco se examine,
Que a verdade brilhará."
"Pensas, bem," repele a velha,
A quem a filha aconselha,
Mas que lá não entrará.

Escravos,, escravas, tudo
Entra, e que é do boneco?
De medo tudo está mudo,
Tudo passado de horror;
À viúva então se aumenta
Mais e mais o pavor.
"Ah fugiu!" a velha exclama,
E logo embaixo da cama
Sentiu-se certo rumor!

Fogem de susto transidos
Alguns, outros mais afoitos
Se mostram mais atrevidos,
Vão lá mesmo o examinar;
E de rirem-se às galhofas
Ah! não se podem furtar
Vendo o velho lá metido,
Que para fora trazido
Nada ousa de falar.

Oh ! que figura excelente
Para aquelas a desoras
Meter medo a muita gente,
Vestido de balandrau!
"Então," disse a velha ao mano,
"Como o boneco de pau,
Quiseste com a viuvinha
Passar só esta noitinha?
Ora o caso não está mau."

E pela mão o tomando,
O pôs pela porta fora;
Lá foi o velho gramando,
Com a calva à mostra ao ar,
O orvalho da madrugada,
Que brilhava com o luar,
E dizem que até de medo
Fez ficar como um rochedo
Quem por lá estava a rondar.

Qual criança que chorando
Com medo vem para a cama
Da mãe que trata, a amimando,
Do seu pavor extinguir;
Assim Xiquinha essa noite
Foi com sua mãe dormir,
E rezou porque o esposo
Não viesse buliçoso
Inda com ela bulir.

Passou-se. Por mal pecado
O pobre amoroso velho
Viu-se assaz desesperado
Com reumática dor,
Pois o orvalho que apanhara
Foi só disso causador;
Sabe-o ele e se consola,
Pois confessa por gabola
Que padece por amor.

E também por simpatia
A velha mãe da viúva
Até mesmo neste dia
Como ele adoeceu;
E deixando a sua filha
Para a cidade volveu,
Aonde aos mil boticários,
Graças aos receituários,
Muito dinheiro rendeu.

À tarde a viúva bela
A distrair-se corria
Um breve instante à janela;
Quando estando um dia assim
Viu de bom tornar-se o tempo
Logo em tempo tão ruim
E cair tão grossa chuva
Que afigurou-se à viúva
O mundo tocando o fim.

E eis à porta um cavaleiro
Que lhe pede um agasalho,
É belo e moço e faceiro,
E um fio enxuto não tem;
Nega-lo-á? Não por certo,
Que tal não parece bem;
Abre-se a porta, e o moço
Entra sem mais alvoroço,
Que todo alagado vem.

Logo um pagem bem vestido
Lhe recolheu o cavalo,
Porém o moço sentido
Maldizia o fado seu;
Pelo seu negro bigode
Ela bem o conheceu,
E para enxugar-lhe a roupa
Um só esforço não poupa,
E um projeto concebeu.

"Sou, senhor, uma viúva,
De homem não tenho roupa
Para dar-vos, pois a chuva
A que tendes ensopou,
Mas um meio de enxugá-la
Agora me recordou;
E logo pela mucama
Gritando, apressada chama,
E buscar fogo mandou.

Mas em casa não havia
Carvão nem seca lenha;
Para buscá-la chovia
E lá bramia o trovão;
Nesse caso outra ideia
Lhe veio à imaginação,
E para acender o fogo
Mandou o boneco logo
Sem maior hesitação!

E chovia e bem chovia,
E nas chamas crepitava
A lenha seca que ardia
Daquele adorado pau!...
E o moço o expediente
Conhecia não ser mau,
E enquanto a roupa secava
Na cama ele se aquentava
À falta de balandrau...



Fonte: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.
Originalmente publicado em: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.