Verdades

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Poema de Gregório de Matos



Ouve, ó amigo João,
Esta verdade que canto,
Se a verdade causa espanto
Esta causa admiração:
É certo, sem remissão,
E contra isto não há nada,
Que a outra verdade usada
Com rebuços, mais enganos,
É verdade de maganos,
Mas esta é de gente honrada.

Domingos e dias santos
Nos manda a igreja guardar,
Nos mais dias trabalhar:
As mulheres trazem mantos:
Os doutos estão nos cantos,
Os ignorantes na praça,
Os cachorros vão à caça,
Os gatos furtam as ceias,
Os barbeiros rasgam veias
E as padeiras fazem massa.

Os homens fazem a guerra,
E as mulheres fazem renda,
Os tolos não têm emenda,
Os capos cavam a terra:
O bezerro sem mãe berra,
Batem bandeiras alferes,
Os pobres buscam haveres,
Os peixes nadam no mar,
As purgas fazem purgar,
E os franciscanos colheres.

Os cavalos comem erva,
Os despidos andam nus,
Come o Gentio cajus,
Os Tapuias são caterva:
Não dorme de noite a cerva,
Os macacos fazem momos,
Os escriturários tomos,
Os namorados passeiam,
As fragonas zombeteiam,
E as limas todas têm gomos.

Todos os ferrões têm ponta,
A água do mar é salgada,
O hóspede logo enfada,
Todo o algarismo é conta:
A nau sem vela não monta,
O badalo dá no sino,
Chorar muito é desatino,
Muito comer enche a pança,
Bum-bum é água em criança
E ter em pé, pino-pino.

Os caranguejos têm pernas,
Tocado o tambor faz bulha,
O arreld desempulha,
O navio tem cavernas;
O fogo acende as lucernas
Os c... fedem a m...,
Quem degenera não herda,
O carvão todo é de lenha,
É só de lã a estamenha,
E a cabeleira tem cerda.

As ervas são todas folhas,
As laranjeiras dão frutas,
Mulheres damas são p...,
Uma talha são dez polhas:
As botijas levam rolhas,
Toda a neve é branca e fria,
A irmã de mãe é tia,
É o bronze todo duro,
Onde não há luz, é escuro,
Quando não é noite é dia.

O sol e o fogo são quentes,
A chuva aonde cai molha,
Quem não tem vista não olha,
Ossos na boca são dentes:
É afronta dizer - mentes!
É ave grande a galinha,
O cabelo cai com tinha,
Quem é rouco tem catarro,
Carregado canta o carro,
Mulher de rei é rainha.

Não há barba sem cabelo,
A área toda é de grãos,
Toca-se a harpa com as mãos,
É animal o camelo:
Nenhuma calva tem pelo,
Os ovos saem pelo c...,
É marisco o sururu,
Todo o feijão é legume,
Coze-se o comer ao lume,
É abóbora o gerumú.

Todo o unguento é mezinha
Não tem banha o bacalhau,
Papas ralas é mingau,
Trigo moído é farinha:
Coisa alheia não é minha,
Não há escada sem degraus,
Os pícaros são maraus,
Tem aduelas a pipa,
Umbigo é ponto de tripa,
Sempre é loio o rei de paus.

Primeiro foi frango o galo,
Palangana é prato fundo,
É redondo todo o mundo,
As luvas não fazem calo:
Tem quatro pés o cavalo,
Nunca mija o papagaio,
O chouriço grande é paio,
Não sabe ler a guariba,
Quem tem carcunda tem giba,
Antes de junho está maio.

Todo o chapéu é sombreiro,
As árvores são de pau,
Tudo o que não presta é mau,
E faz a barba o barbeiro:
O c... detrás é traseiro,
É nervo a pena de pato,
Filho de parda é mulato,
Mulheres todas são fêmeas,
Duas em um ventre são gêmeas,
No pé se calça o sapato.

Toda a coisa negra é preta,
Papel é de trapos velhos,
Olhos do c... são besbelhos,
Bordão de velho é muleta:
O mascarado é careta,
Tabaco é fumo pisado,
Peixe de moquém é assado,
O pirão duro é taipeiro,
Mareta em mar é carneiro,
Rapadura é mel coalhado.

Quem não tem juízo é tolo,
Quem morre fica sem vida,
Perna delgada é comprida,
Reposto de jogo é bolo:
Negro ladino é crioulo,
Sebo de vaca é gordura,
Fígado e bofes forçura,
Manteiga é nata de leite,
É óleo todo o azeite,
E todo o vigário é cura.

Sem a língua não se fala,
Quem não come morre a fome,
A empinge toda come,
O surrão de couro é mala:
Palalá é ...  rala,
O tatu tem casca dura,
O salgado faz secura,
Arroz sem casca é pilado,
As sopas são pão molhado,
O ferrolho é fechadura.

Os bancos servem de assento,
Leicenço tem carnegão,
Homem de vila é vilão,
As penas voam com vento:
O adro da igreja é bento,
A camisa é roupa branca,
Pau que fecha a porta é tranca,
Tem ventas todo o nariz,
Toda a batata é raiz,
A cara feia é carranca.

A farinha do Brasil
Primeiro foi mandioca,
Milho estalado é pipoca,
O gato todo é sutil:
Três barris e um barril
Enchem todos uma pipa,
Não se faz casa sem ripa
Ou vara com seu cipó,
Quem não tem ninguém é só,
Todo o bom cavalo esquipa.

Sempre é boa a espada nova,
Mas a velha é saramago,
Homem que gagueja é gago,
Toda a banana é pacova:
Quem morreu vai para a cova,
Olho do c... é macaco:
Água de flor do sovaco
Deu sempre vida a um morto,
O que tem um olho é torto,
Guariba não é macaco.

Solimão e rosalgar
Matam porque são veneno,
Grande doutor foi Galeno,
O fazer curso é purgar:
Falar por solfa é cantar,
Na botica há trementina,
Criança fêmea é menina,
...,
Mascarado é papa-angu,
Óleo de pinha é resina.
 
Tabaco pobre é macaia,
Ave sem pena é morcego,
Toda a água do Mondego
Desemboca pela praia:
Quem é mulher veste saia,
Os homens vestem calções,
Têm os negros seus bordões,
E cinco palmos a vara,
Tantas arrobas de tara
Tem cada um dos caixões.

Aguardente é jeribita,
... dura é ...,
A .... é pismam,
E todo o listão é fita:
A cólera logo irrita,
Ganhamú é caranguejo,
Não é santo São Serejo,
Mas no céu moram os santos;
Todas as casas têm cantos,
Do leite se faz o queijo.

Nos trunfos há basto e sota,
Dará cartas quem foi mão,
A mulher tem seu pampam,
Pelo pé se calça a bota:
Quem não tem voto não vota,
O que deu cartas é pé,
O escrivão porta por fé,
Obra grosseira é do Porto,
Todo o defunto está morto,
Vaza e mais enche a maré.

Almorreimas é quentura,
As redes têm seus cadilhos,
Zebedeu foi pai de filhos,
Quem morreu já não tem cura:
...,
...,
Jogo de três é a espadilha,
Ao de dois lhe chamam zanga,
Camisa tem sua manga,
Não há navio sem quilha.

Faz pastéis o pasteleiro,
Toda a virgem é donzela,
No Brasil ha já canela,
Todo o frade é redoleiro,
Bate no ferro o ferreiro
E o marido na mulher
Porque um e mais outro quer
E gostam da tal asneira,
E não há mister peneira
Quem farinha não tiver.

Todas as cores são tintas,
Duro pau é supipira,
Quem é manso não tem ira,
Do zengá se fazem cintas:
Portugal tem ricas quintas
E cada uma tem seu dono,
O que quer dormir tem sono,
O que dorme está dormindo,
O que veio tem já vindo
E toda a solfa tem tono.

Há pelo entrudo filhoses,
Não há carne na quaresma,
É todo o fedelho - lesma,
No poder os reis são croces:
Quem tem dente come nozes,
O que quebra está quebrando,
Quem come está manducando,
O que corre vai correndo,
O que bebe está bebendo
E quem joga está jogando.

Dico vere veritates,
Crede mihi, vou falando
E quanto mais for andando,
Magis dicam asnitates:
No Recife há mil mascates
Sobreposse mercadores,
Geme quem padece dores,
É o ... todo vento,
Freiras moram no convento,
E quem quer tem seus amores.

As madrinhas são comadres,
Chocolate tem cacau,
Passa dez não é pacau,
Clérigos todos são padres:
É cego não ver por grades,
O limão todo é azedo,
O que tem pavor tem medo,
E' boa a mulher que...,
Não é boa a... mole,
A pedra grande é penedo.

Quem tem boca vai a Roma,
Quem tem sangue faz chouriços,
As abelhas têm cortiços,
A zabelê sua coma:
O ruim açúcar é broma,
A canada tem quartilho,
Não tem pé a mão de milho,
Coruja não é canário,
Livro velho é calendário,
O maná não é quintilho.

É o memento lembrança
Das almas do outro mundo,
A panela tem seu fundo,
E quem herdou teve herança:
É zombar estar de chança,
Muitos filhos tem Antônio
Nunes do seu matrimônio,
Que dos outros não sabemos;
Aposto que já entendemos
Em que é purga o antimônio.

Os sapatos levam sola,
A carne de boi é vaca,
A m... em criança é caca,
É redonda toda a bola:
Passarinho na gaiola
Está preso na cadeia,
O gatinho bravo meia,
São frades os franciscanos,
O homem velho já tem anos,
A formosa não é feia.

Quem vai só - vai solitário,
Quem tem fome escusa molho,
O c... tem no meio olho,
Tem a mulher ordinário:
Chama-se a peça Calvário;
Cidades tem Portugal,
Ouro é o que ouro vale,
Pratos de cor tem rabique,
Não se faz renda sem pique,
Todo o salgado tem sal.

Pecados mortais são sete
E dez são os mandamentos,
Sete são os Sacramentos,
O estojo tem canivete:
Os frades com seu topete
Não pagam aluguel de casas,
Os anjinhos levam asas,
Cães de fila todos mordem,
Sacramento sexto é ordem,
Ganhou o que fez mais vazas.

Estas pois e outras verdades,
Amigo, que aqui vos digo
São as de que sou amigo;
...,
O mais são só asnidades
Desses que dizem rodeios,
Porque só por estes meios
Se fala bem português;
Tudo o mais é ser francês,
E trazer na boca freios.



Fonte: "Obra Poética", Tipografia Nacional, 1882.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.