O sapateiro


Poema de Joaquim Norberto de Sousa Silva



Mestre João, sapateiro,
Nesta cidade vivia
Balde aos naipes, sem dinheiro,
Pois jamais o fruto via
Dos árduos trabalhos seus
Por mais que o pedisse a Deus.

E metido nas encospias
Batia tanto na sola
Como na vida alheia,
E até ao som da viola
Cantava por fá bordão
Os erros da geração.

Os vizinhos, já mordidos,
Lhe tinham seu odiosinho
Que se aumentava se o viam
Tomado de cana ou vinho
Porque então mais valentão
Com ninguém tinha atenção.

Por cima dele morava
Um sábio que muito lia
E que sempre rabiscava
Memórias que, ainda um dia,
Para o universo assombrar,
Pretendia publicar.

E jurava o sapateiro
Que com ele não trocava
Sua pasmosa leitura,
Gazetas que devorava,
Isso desde que aprendeu,
No que muito despendeu.

"Faça ideia", ele ajuntava,
"Sempre e sempre a ler gazetas
O que não terei já lido?
Quem me dera nas gavetas
O dinheiro que gastei
Des' que a primeira assinei."
 
Porém o sábio apostava
Que ainda mais lucraria
Se antes quisesse o dinheiro
Do que bebera e bebia,
Pois que a pipa mais fiel
Era que a sua Isabel.

E mestre João por certo
Era sábio sapateiro,
Pois no oficio que seguia
Podia ser o primeiro
Pela sua ilustração
E afamada erudição.

Sabia até o feitio
Do bom sapato saxônio
E as sandálias normandas
E as botinhas de um lapônio
E a origem do canhão
Da bota à Napoleão.

Viu as botas desse Henrique
Que em Inglaterra foi terceiro;
Guarnecidas de alças de ouro,
Sendo em usá-las primeiro,
Tendo por decoração
A carranca de um leão!

Sabia que São Lichino
Fora o primeiro sufeito
Que apropriou o sapato
Ao pé esquerdo ou direito,
Sem os bicos esquecer
Que assaz deram que fazer.

Tinha até suas notícias
Dos pantufos de que usavam
As Brasis catequizadas,
Porém que andando os largavam
Sem costume, dando assim
Aso a rir a frei Cardim.

Até conheceu as sandálias
Que fez para si Anchieta
Quando nos bosques brasílios
Afrontando a dura seta
Do tapuia o reduziu,
E ao batismo o conduziu.

E contava aquela história
Que nossos avós sabiam
Quando coisinhas lascivas
Com parras verdes vestiam,
Vendo um rei num camarim
A perder o seu chapim.

Um dia que ele atacado
Se achava de mais prudência,
Orando sobre a riqueza
Com capadócia eloquência,
Sua inópia lastimou
E de ser rico jurou.

E esperava com dinheiro
Ser ainda muito honrado,
Não passar jamais por ébrio
Inda mesmo emborrachado;
Nem ser tido por ladrão
Inda com o furto na mão.

E trouxe a pelo e bem trouxe
A coeva e bela história
De parte dessa nobreza,
Sem passado, transitória,
Mas que promete ao porvir
O seu presente encobrir!

Hoje então que todo homem
Morto apenas se transforma;
Se foi néscio morre sábio,
Já ninguém lhe sabe a norma!
Pois até quem foi ladrão
Morre santo e pobretão!

Algum padre relaxado,
Algum militar sem brio;
Quem ai assaz roubara,
Ou matou a sangue frio;
Morto tem nalgum jornal
Um artigo em funeral!

A bela da sua esposa
Soltou logo um apoiado
Mal ouviu o seu projeto,
De modo que um deputado
Não o faria melhor
Nem com careta pior.

Mas do real ao pintado
Dizem que há dificuldade,
E que um plano ou um projeto
Não vai à realidade
Sem trabalho, sem afã,
E inda assim a cousa é vã.

E mestre João coitado
Noite e dia trabalhando
Só de rico ser cuidava
Com barras de ouro sonhando:
Viajava em pleno mar
E cria a terra avistar!

A esposa lhe aconselhava
Que não mais se emborrachasse;
Que todo o santo dinheiro
Que viesse entesourasse;
Que fosse aos tratos fiel
Mais do que a sua Isabel.

O bom do mestre fazia
Tudo quanto ela indicava,
Porém nunca progredia,
Sempre para trás andava,
Estava caro o cabedal,
Não ganhava; é natural.

Um dia que de ser rico
Já ia desesperando,
Viu passar por sua porta
Garboso, todo gingando
Um famoso mocetão
Mais soberbo que um barão.

Levava o chapéu a banda
Robinson de grande roda,
Era em fim um figurino
Vestido ao rigor da moda,
Nem lhe faltava o grilhão
Relógio e áureo argolão.

Conheceu-o! Pobre moço,
Nada tinha que lhe desse
Para suster esta vida,
Quanto mais pra que pudesse
Esse luxo sustentar,
Sem saber bem palmilhar?

Chamou-o pelo seu nome,
E mirou-o muito a gosto
Vendo os anéis de seus dedos,
Sem se importar com o seu rosto;
E depois lhe perguntou,
Como a tão rico chegou?!

"Eu", ajuntou-lhe o bom mestre,
"Vivo sempre trabalhando,
Com intenção de ser rico,
Mas em vão, em vão. Andando
Estou sempre para trás,
Que a fortuna assim me traz!"

"Amigo", voltou-lhe o moço,
"A tua sorte lamento,
Mas se queres sem trabalho
Ficar rico num momento
Trabalha na escuridão;
Pé ligeiro... leve mão !..."

"Deveras? Pois fazes isso?"
"Oh se faço!" "Não tens medo?"
"De que?" "De ir à cadeia
Que não é para brinquedo,
Pois quem furta, a mais tardar,
Vai à cadeia parar!"

"Pelos pais pagam os filhos,
Nada temas, vem comigo,
Que esta noite é de pechincha,
E o assalto sem perigo;
Nossas culpas, meu João,
Nossos filhos pagarão!"

O mestre logo alegrou-se
Com a ideia de não ter filhos,
E para anuir à empresa
Não achou mais empecilhos;
Dado o prazo ele ficou
De lá ir, e não faltou!

Veio a noite; ele calado
Nem à esposa nada disse,
Mas pôs-se logo na rua
Tão cedo na cama a visse;
E caminhou, caminhou,
E a Lampadosa chegou.

Disfarçado, mal vestido,
Já lá estava o companheiro;
Besuntado e azeitado,
Como um limpa-candieiro,
Para melhor disfarçar
O que ali ia a intentar.

Tomaram d'uma gazua,
E a porta da sacristia,
Que era fraca, cedeu logo
Ao braço que a investia,
E cada qual por sua vez
Entrou como bom freguês.

O moço com pouca coisa
Se contenta e lá se safa;
O mestre levava um saco
A acudir-lhe a grande rafa
E se pôs a seu vagar
Prata e ouro a procurar.

Tudo o que foi encontrando...
Lá foi no saco metendo,
Até que por fins de conta
Algum ruído fazendo
Acordou o sacristão
Que gritou: "Pega ladrão!"

Quis fugir o pobre mestre,
Porém o tino perdendo,
Não acertando co'a porta,
Foi a cabeça batendo
Por tudo quanto encontrou,
Que o sacristão o agarrou.

Isabel lá no seu leito
Dormia suave sono
E sonhava que o marido
Era de um palácio dono,
E acordando o procurou,
E em vão por ele chamou.

Mestre João a tal hora
No Aljube aferrolhado
Maldizia o companheiro
Que assim o tinha enganado
E sem os olhos fechar
Não fazia que chorar.

Rompe o dia. O companheiro
Veio passar pela frente
Da cadeia, onde à janela
Estava o triste paciente,
Que ao vê-lo logo o chamou
E assaz dele se queixou.

"Asseguraste", diz ele,
"Que os pais nada sofreriam,
Pois que pelos seus pecados
Só os filhos pagariam,
Mas tudo errado saiu
Que a culpa em mim só caiu!"

"Mestre, mestre", volta o moço,
"Não me culpes de teu fado;
Olhaste para o presente
E esqueceste o passado;
Tu sabes, mestre João,
Se teu pai não foi ladrão?"

Caiu então em si o homem
Que sem ver mais empecilhos
Para sua vil empresa
Se lembrou de não ter filhos
E de seu pai se esqueceu
E de pena não morreu



Fonte: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.
Originalmente publicado em: "Flores entre espinhos", B. L. Garnier, 1864.