Lira XIV (parte III)
Poema de Thomaz Antônio Gonzaga
Contente promete
Alcino pastor
A dar-lhe Marília
Mil votos a amor.
O dar-lhe Marília
Amor lhe promete:
Alcino gostoso
Os votos repete.
Marília adorava
O seu pescador;
Sem ele um momento
Não tinha calor.
Dirceu desvelado
Por ela morria;
As trutas mais frescas
Do mar lhe trazia.
Amor bem conhece
Ser coisa odiosa
Roubar a Dirceu
Marília formosa.
Mas tinha d'Alcino
Mil votos amor;
Pois era na aldeia
Mais rico pastor.
Entrou o vendado
Na dura batalha;
E sobre os amantes
Ciúmes espalha.
Mas eram tão firmes
Os seus corações,
Que o zelo não pôde
Quebrar-lhe as prisões.
Amor caviloso,
Que vive em receio,
Se vão a abraçar-se,
Se mete no meio.
Os braços abrindo,
Os quer separar:
Mas fez nos amantes
Mais fogo atear.
Alcino lhe pede
Que cumpra a promessa:
Amor as ciladas
De novo começa.
No braço lhe pega,
A ela o presenta,
E as faces rosadas
A ele lhe aumenta.
Marília engraçada,
Sem ter turbação,
Põe logo raivosa
Os olhos no chão.
A eles voando
Lhos quer levantar;
Mas ela constante
Os chega a fechar.
Do caro Dirceu
A voz escutando,
Para onde ele vinha
Os foi levantando.
Acode-me, acode,
Ó meu pescador!
Marília tu vinga
D'Alcino e de amor.
Às vozes acode
O amante ligeiro,
E toma nos braços
O bravo frecheiro.
De sorte o aperta,
Que amor sossobrado
Lhe diz: "Não me mates,
Estou emendado".
"Já sei quanto pode
A firme constância;
Ou sendo em presença,
Ou quando em distancia."
Alcino raivoso
Entrou a bradar:
"De-ti, amor cego,
Me quero vingar."
"Já força não tens,
Estúpido amor,
Enganas a gente
Não tendo valor."
Amor indignado
O busca ferir;
Alcino de medo
Deitou a fugir.
Voltou-se aos amantes,
E disse-lhes assim :
"Busquei separá-los,
Prende-los mais vim."
"Quiz dar-te, Dirceu,
Um fero rival:
Se é firme a beleza
Astucia não val."
Dirceu a Marília
Os braços lançou:
Amor de invejoso
Raivando voou.
Fonte: "Marília de Dirceu", Irmãos Garnier Editores, 1862.
Originalmente publicado em: "Marília de Dirceu", 1792.