Lira XXXVII (parte II)
Poema de Thomaz Antônio Gonzaga
Se o vasto mar se encapela
E na rocha em flor rebenta,
Grossa não que não tem leme,
Em vão sustentar-se intenta;
Até que naufraga e corre
À discrição da tormenta.
Quem não tem uma beleza
Em que ponha o seu cuidado;
Se o céu se cobre de-nuvens
E se assopra o vento irado,
Não tem forças que resistam
Ao impulso do seu fado.
Nesta sombria masmorra
Aonde, Marília, vivo,
Encosto na mão o rosto,
Fico ás vezes pensativo:
Ah que imagens tão funestas
Me finge o pesar ativo!
Parece que vejo a honra,
Marília, toda enlutada;
A face de um pai rugosa
N'um mar de pranto banhada;
Os amigos macilentos,
E a família consternada.
Quero voltar os meus olhos
Para outro diverso lado;
Vejo n'uma grande praça
Um teatro levantado;
Vejo as cruzes, vejo os potros,
Vejo o alfange afiado.
Um frio suor me cobre,
Laxam-se os membros, suspiro;
Busco alívio às minhas ânsias,
Não o descubro, deliro;
Já, meu bem, já me parece
Que nas mãos da morte expiro.
Vem-me então ao pensamento
A tua testa nevada,
Os teus meigos, vivos olhos,
A tua face rosada,
Os teus dentes cristalinos,
A tua boca engraçada.
Qual, Marília, a estrela d'alva
Que a negra noite afugenta;
Qual o sol que a névoa espalha
Apenas a terra aquenta;
Ou qual íris, que o céu limpa
Quando se vê na tormenta:
Assim, Marília, desterro
Triste ilusão e demência;
Faz de novo o seu ofício
A razão e a prudência,
E firmo esperanças doces
Sobre a cândida inocência.
Restauro as forças perdidas,
Sobe a viva cor ao rosto,
Gira o sangue pela veia
E bate o pulso composto:
Vê, Marília, o quanto pode
Contra meus males teu rosto.
Fonte: "Marília de Dirceu", Irmãos Garnier Editores, 1862.
Originalmente publicado em: "Marília de Dirceu", 1792.