Lira XIV (parte II)

Imagem de Thomaz Antônio Gonzaga

Poema de Thomaz Antônio Gonzaga



Ah Marília, que tormento
Não tens de sentir saudosa!
Não podem ver os teus olhos
A campina deleitosa,
Nem a tua mesma aldeia,
Que tiranos não proponham
À inda inquieta ideia
Uma imagem de aflição.
Mandarás aos surdos deuses
Novos suspiros em vão.

Quando levares, Marília,
Teu ledo rebanho ao prado,
Tu dirás: “Aqui trazia
Dirceu também o seu gado.”
Verás os sítios ditosos
Onde, Marília, te dava
Doces beijos amorosos
Nos dedos da branca mão.
Mandarás aos surdos deuses
Novos suspiros em vão.

Quando à janela saíres,
Sem quereres, descuidada,
Tu verás, Marília, a minha,
A minha pobre morada.
Tu dirás então contigo:
“Ali Dirceu esperava
Para me levar consigo;
E ali sofreu a prisão.”
Mandarás aos surdos deuses
Novos suspiros em vão.

Quando vires igualmente
Do caro Glauceste a choça
Onde alegres se juntavam
Os poucos da escolha nossa,
Pondo os olhos na varanda,
Tu dirás, de mágoa cheia:
“Todo o congresso ali anda,
Só o meu amado não.”
Mandarás aos surdos deuses
Novos suspiros em vão.

Quando passar pela rua
O meu companheiro honrado,
Sem que me vejas com ele
Caminhar emparelhado,
Tu dirás: “Não foi tirana
Somente comigo a sorte;
Também cortou, desumana,
A mais fiel união.”
Mandarás aos surdos deuses
Novos suspiros em vão.

Numa masmorra metido,
Eu não vejo imagens destas,
Imagens que são, por certo,
A quem adora funestas.
Mas se existem separadas
Dos inchados, roxos olhos,
Estão, que é mais, retratadas
No fundo do coração.
Também mando aos surdos deuses
Tristes suspiros em vão. 



Fonte: "Marília de Dirceu", Irmãos Garnier Editores, 1862.
Originalmente publicado em: "Marília de Dirceu", 1792.