Carnaval

Imagem da poeta Jacinta Passos

Poema de Jacinta Passos



Um povo surgiu, surgiu não sei donde,
dançando, cantando, um povo surgiu.
- Você me conhece? - Não conhece não.
E a voz se perde na multidão.
Eu sou a Bahia.
- Viva o Rei Momo! - hoje é seu dia.
Chora a menina,
com medo do mandu.
- Lá vem o cordão!
Bate o batuque
e o batuque bate.
Negro preto,
cor de urubu,
bate o batuque
e o batuque bate.
Negro é rei
no carnaval,
tem manto, tem cetro,
e o chapéu de sol
é pálio real.
Gritos humanos, interjeições,
lança-perfume, desejos sem rumo, acres, com gosto de mar,
um cheiro forte de todas as raças
vibram no ar.
Uma massa humana,
todas as cores,
todas as raças,
todas as classes,
em confusão.
De que subsolo irrompeu, informe, nua,
essa nova realidade sem nome que dança na rua?
A rua Chile,
a rua grã-fina,
cadê os donos da rua-salão?
- Madame ultrachique que tem três amantes.
- O burguês graúdo,
- Os vagabundos elegantes,
- Os literatos de academia,
carro oficial,
rodas de porta de confeitaria
que resolvem o momento internacional.
Cadê a gente de todo dia,
cadê os donos da rua-salão?
Passa uma “dama” de cetim vermelho
que mora dos lados do Pau Miúdo.
Ondas humanas que vão e que vêm,
ritmo de samba até no andar.
Um louro estrangeiro que samba também.
- Olhe a mulata de seu Manoel Português!
Passa no carro, gorda, imponente,
com um chapeuzinho de chinês.
Cordão do Chame-Chame. Bonde cheio. O doutor da Vitória quer tomar.
- Segue o bonde, não há mais lugar.
- Você me conhece? - Não conhece não.
E a voz se perde na multidão.
Um povo surgiu, surgiu não sei donde
dançando, cantando, um povo surgiu.
Os homens do mundo estão no meu sangue.
No meu sangue,
as raças,
as classes,
os povos
misturam-se.
Eu sou a Bahia.
- Viva o Rei Momo! hoje é seu dia.



Fonte: "Jacinta Passos, coração militante", Editora EDUFBA, 2010.
Originalmente publicado em: "Nossos Poemas", Editora Bahiana, 1942.