O canto de amanhã
Poema de Jacinta Passos
Desabem sobre mim os grandes sofrimentos.
As dores elementares,
a fome,
o frio,
o cansaço,
a miséria,
que marcam como fogo o ser humano total,
desabem sobre mim.
Fortes ventos em fúria me arrastem na tormenta.
E como uma planta de estufa
transplantada,
eu viva como vivem as plantas do mato,
plantas sem nome perdidas em imensas florestas bravias
onde sopram terríveis vendavais.
Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem.
O meu espírito se apague
e a consciência do meu corpo cresça como uma realidade absorvente,
a única realidade.
Eu seja apenas uma boca faminta
que sabe o valor de um pedaço minúsculo de pão.
Eu seja apenas braços exaustos que não podem parar
e pés cansados e doridos que não encontram o fim do seu caminho.
Eu seja apenas mãos,
ásperas mãos calejadas pelos rudes contatos cotidianos
e que, trêmulas, trêmulas, tiritam de frio.
Eu seja apenas uma carne nua
que disputa um trapo de pano,
o pão,
a água,
o fogo,
a terra,
o ar,
que disputa cada milésimo de tempo que vive.
Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem,
entre pedras, ferro, pai, mãe,
ouro, árvores, filhos, irmãos e companheiros,
entre animais, carvão, petróleo, alavancas e máquinas.
Minha cabeça se curve ao peso da fria injustiça organizada e aceite
e receba a piedade como último insulto.
Eu seja apenas uma coisa entre as coisas de que os homens se servem
e, do fundo de meu ser revolvido pelas dores elementares,
nascerá,
simples como desponta à flor da terra um fio das grandes águas subterrâneas,
o canto dos que têm fome e sede de justiça.
Fonte: "Jacinta Passos, coração militante", Editora EDUFBA, 2010.
Originalmente publicado em: "Nossos Poemas", Editora Bahiana, 1942.