O poeta que dorme dentro de vós
Poema de Jorge de Lima
Ele possuía mãos longas
e seus olhos eram meigos.
Ele era duro, ríspido e triste
e algumas vezes contentíssimo.
Se alguém olhasse bem de perto
decerto logo enxergaria
que viera ele de muito longe
e que havia luas extintas
espalhadas pelo seu corpo.
Ele era puro como um menino
e era sábio como um profeta;
mais ligeiro que qualquer flecha
ia dum século para outro.
E via através das superfícies.
Mas rápido se enternecia
pois era a vida que entrevia
com seus desastres sucessivos.
Ele se lembrava de quando
dormira nos tempos sem fim.
Existia nas suas mãos
um halo que ninguém sabia
se era do céu ou do inferno.
E suas espáduas possuíam
um barulho de asas voando.
Sofria muito o ser estranho
com a iniquidade dos irmãos,
com a opacidade dos homens.
O mundo era muito pausado
para seus passos gigantescos.
Muitas mulheres o vaiaram
pois não ouviam seus apelos
se esses apelos eram sujos.
A ninguém temia esse homem;
só a si próprio se temia
e aos seres que nele havia,
aos túmulos que nele moravam.
Quando pousava a mão num homem
logo esse homem se retraía,
ficavam os ossos do homem,
pois o demais ele comia
com sua memória lendária
com sua pura inteligência.
Amava ir todas as tardes
pelas praias do mar andando,
falava com as algas e as conchas
e ia dormir nas marés cheias
embalado nas águas móveis.
Suas marés eram diversas,
sua sombra ia aos desertos.
Ele tinha chegado antes,
antes do mundo ser criado:
era um ser duplo, triplo, quádruplo,
era sem tempo e sem espaço
e ao mesmo tempo realíssimo.
Nas florestas negras e imensas
vagabundeava muitas vezes.
Várias princesas o chamaram:
passou por elas procurando
o ser ideal que imaginou.
E nunca o encontrando no mundo
repousa, repousa, repousa
dentro de cada um de nós.
Fonte: "Obra Poética", Editora Getulio Costa, 1949.
Originalmente publicado em: "A túnica inconsútil", Editora Cultural Guanabara, 1938.