Tragédia no lar

Imagem de Castro Alves

Poema de Castro Alves



Na senzala, úmida, estreita,
Brilha a chama da candeia,
No sapé se esgueira o vento
E a luz da fogueira ateia.

Junto ao fogo, uma africana,
Sentada, o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Uma tirana indolente
Repassada de aflição.
E o menino ri contente...
Mas treme e grita gelado
Se nas palhas do telhado
Ruge o vento do sertão.

Se o canto para um momento,
Chora a criança imprudente...
Mas continua a cantiga...
E ri sem ver o tormento
Daquele amargo cantar.
Ai! triste, que enxugas rindo
Os prantos que vão caindo
Do fundo, materno olhar
E nas mãozinhas brilhantes
Agitas como diamantes
Os prantos do seu penar...
E a voz como um soluço lacerante
Continua a cantar:

"Eu sou como a garça triste
Que mora à beira do rio, 
As orvalhadas da noite
Me fazem tremer de frio.

Me fazem tremer de frio,
Como os juncos da lagoa;
Feliz da araponga errante
Que é livre, que livre voa.

Que é livre, que livre voa
Para as bandas do seu ninho,
E nas braúnas à tarde
Canta longe do caminho.

Canta longe do caminho
Por onde o vaqueiro trilha,
Se quer descansar as asas
Tem a palmeira a baunilha.

Tem a palmeira a baunilha,
Tem o brejo a lavadeira,
Tem as campinas as flores,
Tem a relva a trepadeira.

Tem a relva a trepadeira,
Todas tem os seus amores,
Eu não tenho mãe nem filhos,
Nem irmão, nem lar, nem flores."

A cantiga cessou... Vinha da estrada,
A trote largo, linda cavalhada
          Do estranho viajor:
Na porta da fazenda eles paravam,
Das mulas boleadas apeavam,
E batiam na porta do senhor.
Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,
Sorrisos sensuais, sinistro olhar,
          Os bigodes retorcidos,
          O cigarro a fumegar,
          O rebenque prateado
          Do pulso dependurado,
          Largas chilenas luzidas
          Que vão tinindo no chão,
          E as garruchas embebidas
          No bordado cinturão.

A porta da fazenda foi aberta;
          Entraram no salão.
Porque tremes mulher? A noite é calma,
Um bulício remoto agita a palma
          Do vasto coqueiral.
Tem pérolas o rio, a noite, lumes,
A malta, sombras, o sertão, perfumes,
          Murmúrio, o bananal.

Porque tremes mulher? que estranho crime,
Que remorso cruel assim te oprime
          E te curva a servir?
O que nas dobras do vestido ocultas?
É um roubo talvez que aí sepultas?
          É seu filho... Infeliz!...

Ser mãe é um crime, ter um filho é um roubo!
Amá-lo uma loucura! Alma, de lodo,
          Para ti não há luz.
Tens a noite no corpo, a noite na alma,
Pedra que a humanidade pisa calma,
Cristo que verga à Cruz!

Na hipérbole de ousado cataclisma
Um dia Deus morreu... fuzila um prisma
          Do Calvário ao Tabor!
Viu-se então de Palmira os pétreos ossos,
De Babel o cadáver de destroços
          Mais lívidos de horror.

Era o relampejar da liberdade
Nas nuvens do chorar da humanidade,
          Ou sarça do Sinai.
Relâmpagos que ferem de desmaios...
Revoluções, vós dele sois os raios,
          Escravos, esperai!...

          Leitor, se não tens desprezo
          De vir descer às senzalas,
          Trocar tapetes e salas
          Por um alcoice cruel,
          Vem comigo, mas cuidado...
          Que o teu vestido bordado
          Não fique no chão manchado,
          No chão do imundo bordel.

          Não venhas tu que achas triste
          Às vezes a própria festa.
          Tu, grande, que nunca ouviste
          Senão gemidos da orquestra...
          Porque despertar tu'alma,
          Em sedas adormecida,
          Esta excrescência da vida
          Que ocultas com tanto esmero?
          E o coração, tredo lodo,
          Feres d'ânfora doirada,
          Negra serpe, que enraivada
          Morde a cauda, morde o dorso,
          E sangra às vezes piedade,
          E sangra às vezes remorso?...

          Não venham esses que negam
          A esmola ao leproso, ao pobre.
          A luva branca do nobre
          Oh! senhores, não mancheis...
          Os pés lá pisam a lama,
          Porém as frontes são puras,
          Mas vós nas faces impuras
          Tendes lodo, e pus nos pés.

Vinde ver como rasgam-se as entranhas
De uma raça de novos Prometeus,
Ai! vamos ver guilhotinadas almas
Da senzala nos vivos mausoléus.

"Escrava, dá-me teu filho!
Senhores, ide-lo ver:
É forte, de uma raça bem provada,
Havemos tudo fazer."

Assim dizia o fazendeiro, rindo,
E agitava o chicote...
                    A mãe, que ouvia
Imóvel, pasma, doida, sem razão!
          À virgem santa pedia
          Com prantos por oração;
          E os olhos ao ar erguia
          Que a voz não podia, não.

" Dá-me teu filho!" repetiu fremente
O senhor, de sobrolho carregado,
"Impossível!..."
                    "Que dizes, miserável?!"
"Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme.
Inda há pouco o embalei, pobre inocente,
Que nem sequer presente
Que ides..."
"Sim, que o vou vender!"
"Vender?!... Vender meu filho?!
Senhor, por piedade, não...
Vós sois bom... antes do peito
Me arranqueis o coração! 
Por piedade, matai-me! É'impossível
Que me roubem da vida o único bem!
Apenas sabe rir... é tão pequeno!
Inda não sabe me chamar!... Também
Senhor, vós tendes filhos... quem não tem?
          Se alguém quisesse os vender
          Havíeis muito chorar,
          Havíeis muito gemer,
          Diríeis a rir - perdão?!
          Deixai meu filho... arrancai-me
          Antes a alma e o coração!"

"Cala-te, miserável. Meus senhores,
          O escravo podeis ver..."
E a mãe em pranto aos pés dos mercadores
Atirou-se a gemer.

          "Senhores! basta a desgraça
          De não ter pátria nem lar,
          De ter honra e ser vendida,
          De ter alma e nunca amar!

          Deixai à noite que chora
          Que espere ao menos a aurora,
          Ao ramo seco uma flor,
          Deixai o pássaro ao ninho,
          Deixai à mãe o filhinho,
          Deixai a desgraça o amor.

          Meu filho é-me a sombra amiga
          Neste deserto cruel...
          Flor de inocência e candura,
          Favo de amor e de mel!

          Seu riso é minha alvorada,
          Sua lágrima doirada
          Minha estrela minha luz!
          É da vida o único brilho
          Meu filho! é mais... é meu filho!
          Deixai-mo em nome da Cruz!..."

Nada porém comove homens de pedra,
Sepulcros onde é morto o coração.
A criança do berço ei-los arrancam
Que os bracinhos estende e chora em vão!

          Mudou-se a cena. Já vistes
          Bramir na mata o jaguar,
          E no furor desmedido
          Saltar, raivando atrevido,
          O ramo, o tronco estalar,
          Morder os cães que o morderam...
          De vítima feita algoz,
          Em sangue e horror envolvido
          Terrível, bravo, feroz?

Assim a escrava da criança ao grito
          Destemida saltou
E a turba dos senhores aterrada
          Ante ela recuou.

          "Nem mais um passo, covardes!
          Nem mais um passo, ladrões!
          Se os outros roubam as bolsas,
          Vós roubais os corações!..."

Entram três negros possantes,
Brilham punhais traiçoeiros...
Rolam por terra os primeiros
Da morte nas contorções.

Um momento depois a cavalgada
Levava a trote largo pela estrada
          A criança a chorar.
Na fazenda o azorrague então se ouvia
E aos golpes - uma doida respondia
          Com frio gargalhar!... 



Fonte: "Os Escravos", Serafim José Alves, 1883.
Originalmente publicado em: "Os Escravos", Serafim José Alves, 1883..