Trechos de O navio negreiro

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Poema de Castro Alves



III

Era um sonho dantesco!... o tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar!...
Tinir de ferros, estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em anciã e magoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica e estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos, o chicote estala...
E voam mais e mais!...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu, que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros !
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente!...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual n'um sonho dantesco, as sombras voam!.
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!...
E ri-se Satanás!

IV

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei me vós, Senhor Deus,
Se é mentira, se é verdade
Tanto horror perante os céus?
Ó mar, porque não apagas
Com a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão...

(...)

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga opressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noute confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, - audaz!...

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz,
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus.
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão!...
Ontem simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão!...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas
De longe, bem longe, vem!
Trazendo, com líbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma - lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite do pranto
Tem que dar para Ismael.

Lá... nas areias infindas,
Das palmeiras no pais,
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis....
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus....
Adeus, ó choça do monte,
Adeus, palmeiras da fonte,
Adeus, amores... adeus....

Depois, o areal extenso.
Depois... o oceano de pó.
Depois - no horizonte imenso
Desertos... desertos só.
E a fome, o cansaço, a sede,
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer,
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem - a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido á toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar.

Ontem - plena liberdade,
A vontade por poder....
Hoje... cúmulo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer....
Prende-os a mesma corrente
Térrea, lúgubre serpente,
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite.... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, senhor Deus,
Se é mentira... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!..
Ó mar, porque não apagas
Com a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

V

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...

Auri-verde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que à luz do sol encerra
As promessas divinas da esperança...
Tu que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue n'esta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas
Como um iris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



Fonte: "Os Escravos", Serafim José Alves, 1883.
Originalmente publicado em: "Os Escravos", Serafim José Alves, 1883..