A fome que houve na Bahia
Poema de Gregório de Matos
Toda a cidade derrota
esta fome universal,
uns dão a culpa total
à Câmara, outros à frota:
a frota tudo abarrota
dentro nos escotilhões,
a carne, o peixe, os feijões,
e se a Câmara olha, e ri,
porque anda farta até aqui,
é cousa que me não toca;
Ponto em boca.
Se dizem que o Marinheiro
nos precede a toda a Lei
porque é serviço d'El-Rei,
concedo, que está primeiro:
mas tenho por mais inteiro
o conselho, que reparte
com igual mão, igual arte,
por todos, jantar e ceia:
mas frota com tripa cheia,
e povo com pança oca!
Ponto em boca.
A fome me tem já mudo,
que é muda a boca esfaimada;
mas se a frota não traz nada,
por que razão leva tudo?
Que o Povo por ser sisudo
largue o ouro, e largue a prata
a uma frota patarata,
que entrando co'a vela cheia,
o lastro que traz de areia,
por lastro de açúcar troca!
Ponto em boca.
Se quando vem para cá
nenhum frete vem ganhar,
quando para lá tornar
o mesmo não ganhará;
quem o açúcar lhe dá,
perde a caixa e paga o frete,
porque o ano não promete
mais negócio que perder
o frete, por se dever
a caixa, porque se choca:
Ponto em boca.
Entretanto eu sem abrigo
e o povo todo faminto,
ele chora, e eu não minto,
se chorando vô-lo digo:
tem-me cortado o embigo
este nosso General,
por isso de tanto mal
lhe não ponho alguma culpa;
mas se merece desculpa
o respeito, a que provoca,
Ponto em boca.
Com justiça pois me torno
à Câmara Nó Senhora,
que pois me trespassa agora,
agora leve o retorno:
praza a Deus, que o caldo morno
que a mim me fazem cear
da má vaca do jantar
por falta do bom pescado
lhes seja em cristéis lançado;
mas se a saúde lhes toca:
Ponto em boca.
Fonte: "Seleção de Obras Poéticas", Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, 1996.
Originalmente publicado em códices da segunda metade do século XVII.