Suprema Dor
Poema de Júlia Cortines
I
Sob o golpe cruel, que não escolhe,
Bárbara, a morte muita vez a vida
De uma pessoa que adoramos colhe.
E a alma sentimos, de terror ferida,
Por circular e gélida muralha
De tênebras de súbito cingida
Mas pouco a pouco a sombra se descoalha
E rarefaz-se toda, ver deixando
Do firmamento a cérula toalha,
Donde um arcanjo, as asas desdobrando,
Desce num voo rápido... Ó saudade,
És tu que desces do alto, transmudando
A treva em radiosa claridade,
Na flor azul e mística do sonho
O curvo espinho da realidade!
O nimbo espesso, elétrico e medonho
Do sofrimento se dissolve em pranto,
Quando, num gesto plácido e tristonho
Colhes as fibras do teu largo manto,
Às dores o consolador abrigo
Do teu regaço oferecendo; e, enquanto
As dores adormeces, do jazigo
Fazes surgir o morto que adoramos,
Em cujas fronte pálida, contigo,
Em sonho, os lábios úmidos roçamos...
II
Mas, quando de improviso nos salteias,
Ó traição, ó víbora assassina,
E o nosso incauto coração golpeias,
Tua verde peçonha viperina
O deteriora, ao sangue se mistura,
Percorre o corpo e o espírito alucina.
Pedido em meio de uma noite escura,
O sofrimento, da razão liberto,
Explode no delírio da loucura.
E ao desvairado e espavorido e incerto
Olhar, em qualquer parte a que o volvamos,
Sombrio quadro se apresenta aberto:
- No passado, se vê-lo procuramos,
Vemos a treda face condenada
Substituir a face que adoramos:
O presente é uma vaga enovelada
Pelo ríspido sopro da desdita,
Pelos escolhos do sofrer rasgada:
O futuro, uma estática e infinita
Solitude, por onde uma só fonte
Não desenrola a prateada fita;
Onde não há vegetação que aponte
À flor do solo adusto, nem miragem
Que nos ria da curva do horizonte
Acenando de longe co’a ramagem
De verdejante e música palmeira
Acarinhada por macia aragem...
Somente um mar de cálida poeira,
Que, sem barulho e agitação, espraia
As brancas ondas do infinito à beira,
Sob a inflamada cúpula sem raia...
Fonte: "Versos; Vibrações", Academia Brasileira de Letras, 2010.
Originalmente publicado em: "Versos", Tipografia Leuzinger, 1894.