Canção do boêmio
Poema de Castro Alves
Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua.
Ladram de tédio vinte cães vadios.
Nini formosa! porque assim fugiste?
Em balde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...
Tudo no quarto de Nini me fala
Em balde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto:
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona: "porque tardas tanto?
Quero esquecer-te, rapariga linda."
Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo clareia uma canção ardente;
Tens um idílio - em tua fronte bela...
Um ditirambo - no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas.
Violei à noite o domicilio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?.,
Vós todos, todos, que dormis em casa,
Dizei se há dor, que se compare à minha!
Nini! o horror d'este sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez d'est'alma.
Deus do Boêmio. São da mesma raça
As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno,
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno
Mesmo eu tomara a primavera a prêmio...
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes
Rompera o canto... Que esperança inglória!...
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande, ó Gloria!...
Batem!... Que vejo! Ei-la afinal comigo.
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!...
Fonte: "Obras completas", Livraria Francisco Alves, 1921.
Originalmente publicado em: "Espumas flutuantes", Camillo de Lellis Masson & C., 1870.