jornal íntimo

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Poema de Ana Cristina César



30 de junho
Acho uma citação que me preocupa: “Não basta produzir contradições, é preciso explicá-las”. De leve recito o poema até sabê-lo de cor. Célia aparece e me encara com um muxoxo inexplicável.
29 de junho
Voltei a fazer anos. Leio para os convidados trechos do antigo diário. Trocam olhares. Que bela alegriazinha adolescente, ex-clama o diplomata. Me deitei no chão sem calças. Ouvi a palavra dissipação nos gordos dentes de Célia.
27 de junho
Célia sonhou que eu a espancava até quebrar seus dentes. Passei a tarde toda obnublada. Datilografei até sentir câimbras. Seriam culpas suaves. Binder diz que o diário é um artifício, que não sou sincera porque desejo secretamente que o leiam. Tomo banho de lua.
27 de junho
Nossa primeira relação sexual. Estávamos sóbrios. O obscureci-mento me perseguiu outra vez. Não consegui fazer as reclamações devidas. Me sinto em Marienbad junto dele. Perdi meu pente. Recitei a propósito fantasias capilares, descabelos, pelos subindo pelo pescoço. Quando Binder perguntou do banheiro o que eu dizia respondi “Nada” funebremente.
26 de junho
Célia também deu de criticar meu estilo nas reuniões. Ambíguo e sobrecarregado. Os excessos seriam gratuitos. Binder prefere a hipótese da sedução. Os dois discutem como gatos enquanto rumbas me sacolejam.
25 de junho
Quando acabei O jardim de caminhos que se bifurcam uma urticária me atacou o corpo. Comemos pato no almoço. Binder me afaga sempre no lugar errado.
27 de junho
O prurido só passou com a datilografia. Copiei trinta páginas de Escola de mulheres no original sem errar. Célia irrompeu pela sala batendo com a língua nos dentes. Célia é uma obsessiva.
28 de junho
Cantei e dancei na chuva. Tivemos uma briga. Binder se recusava a alimentar os corvos. Voltou a mexericar o diário. Escreveu algumas palavras. Recurso mofado e bolorento! Me chama de vadia para baixo. Me levanto com dignidade, subo na pia, faço um escândalo, entupo o ralo com fatias de goiabada.
30 de junho
Célia desceu as escadas de quatro. Insisti no despropósito do ato. Comemos outra vez aquela ave no almoço. Fungo e suspiro antes de deitar. Voltei ao



Fonte: "Poética", editora Companhia das Letras, 2013.
Originalmente publicado em: "Cenas de Abril", Cia Brasileira de Artes Gráficas, 1979.