Falagens
Poema de Ferreira Gullar
I
onde a flor
é lampejo
e a água
é ninfa
líquida
quem
ali
disfarçado
foge na folhagem?
a moça
na folhagem?
desfeita
na brisa?
oculta
na corça?
a vertigem na poça
II
automóveis largados
à ferrugem
ossadas (eixos
placas)
no matagal do domingo
na ferrugem
do domingo
entranhados de afetos
os dejetos
da era
industrial
próximo à gare
da Estrada de Ferro São Luís-Teresina
III
mesmo um trapo fala
farrapo
de voz
língua de pano
porque fala
no trapo
o trabalho
a feitura
e fala
(baixo)
a memória vegetal
do algodão
a flama
branca
da planta
(na lembrança)
ou
como fala um trapo
no chão
como a fala feita
por máquina
ou mão
como flâmula
a fala que fala
no pano
e a extraviada brancura
da flor
que fala
no trapo
e assim
a flora
aflora
IV
e como um trapo a língua
se esfarrapa
e deixa ver o
domingo e suas
nuvens
(na perdida memória)
fogem
os séculos
no capim (entre
os talos)
próximo à estação
da Estrada de Ferro São Luís-Teresina
V
uma blusa vermelha
na corda
e chove de repente
na rua do Alecrim
esperando a chuva
passar quem adivinharia
o encontro
em Moscou?
(as pernas
molhadas de respingos)
quem
adivinharia
o poema
em Buenos Aires o amor
no bairro de Fátima?
VI
os objetos da casa já marcados de abismo
quem adivinharia?
ah, dias e dias e tardes
e dias
nada restará senão
mas a lembrança
de uma
cor
encardida
um caco
de cerâmica no
quintal
a lembrança do
perfume
na horta
o metal
do hortelã
são
uma rara
alegria
VII
a metalurgia no-
turna exercida
no sono
a me-
talurgia do
pássaro
na floresta
(do canto
dele)
e dos
bichos
miúdos
das larvas
a
metalurgia
da brisa
da lama
do inseto
azul que
come
fezes
a metalurgia
do pólen
da
espada
que há na água
(o punhal
dentro das
flores
a lâmina
disfarçada
em aroma)
Fonte: "Coleção Melhores Poemas", Editora Leya, 2012.
Originalmente publicado em: "Barulhos", 1987.