A morte é vária

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Poema de Gonçalves Dias



A morte é vária e multiforme, e muda
De trajes e de máscaras mais vezes
         Qu’uma cansada atriz,
Nem sempre é, qual se pinta, o negro espectro
D ’irônico sorriso e brancos dentes,
         E d’hórrido cariz.

Nem todos seus vassalos são poeira
No ressalto de pedra adormecidos
         Por sob as arcarias,
A pálida libré nem todos vestem,
Nem sobre todos jaz murada a porta
         Nas criptas sombrias!

Diversa a natureza é doutros mortos:
Nestes que a sânie e podridão consomem,
         Vê-se o nada palpável;
Vê-se o enojo, o horror, a sombra espessa
E o esfaimado esquife, abrindo as faces.
         Qual monstro insaciável!

Cabe a outros porém que sem dor vemos
Passar, girar no turbilhão dos vivos,
         De carne inda vestidos,
O nada inda encoberto; cabe a interna
Morte, que ninguém sabe, nem chora,
         Nem mesmo os mais queridos!

Pois, se vamos ver nos cemitérios
As campas, ou ilustres ou sem nome,
         De mármore ou torrão;
Ou tenhamos ali amiga pálpebra,
Ou não, - do teixo à sombra descansada,
         Quer choremos, quer não!

“Jazem” dizemos. Os nomes desaparecem
Sob a relva; o verme nesses olhos
         Enreda a teia crua!
Por entre as pranchas do caixão despontam
Hirtos cabelos, e em pó funéreo envolta
         Branqueja a ossada nua.

Os herdeiros não temem que mais volte;
Esqueceram-no já: seus cães se lembram,
         Soltando uivos de dor!
Acama-se a poeira em seus retratos:
Já não tem mais rivais, não tem amigos,
         Nem ódios, nem amor!

Da morte o anjo, em lágrimas de pedra
Vemos sozinho e mudo a pranteá-lo,
         Estátua da aflição:
A cova toma o corpo, o olvido o nome,
Tem por lençóis seis pés d‘úmida terra.. .
         Mortos, bem mortos são!

E dos olhos talvez se voz deslize
O pranto sobre a relva, pelo orvalho
         E chuva umedecida;
Que na triste mansão os regozije,
E por essa oblação enternecidos
         Um resto achem de vida.

Mortos do coração ninguém os chora,
Ninguém, se a um destes vê, lhe diz piedoso:
         “Seja o Senhor contigo.”
Curam do morto, lavam-lhe as feridas;
Mas a alma estala sem que alguém se doa,
         Nem mesmo o mais amigo!

Há contudo pungentes agonias
Nunca sabidas, dores horrorosas
         Mais do que se não crê;
Almas há que tem cruz e passamento,
Sem auréola d’ouro e a mulher pálida
         E desgrenhada - ao pé.



Fonte: "Poesia completa e prosa escolhida", Editora José Aguilar, 1959.
Originalmente publicado em: "Cantos", 1865.