Um novo Jó
Poema de Manoel de Barros
Desfrutado entre bichos
raízes, barro e água
o homem habitava
sobre um montão de pedras.
Dentro de sua paisagem
- entre ele e a pedra -
crescia um caramujo.
Davam flor os musgos...
Subiam até o lábio
depois comiam toda a boca
como se fosse uma tapera.
Convivência de murta
e rãs... A boca de raiz
e água escorria barro...
Bom era
sobre um pedregal frio
e limoso dormir!
Ao gume de uma adaga
tudo dar.
Bom era ser bicho
que rasteja nas pedras;
ser raiz de vegetal
ser água.
Bom era caminhar sem dono
na tarde
com pássaros em torno
e os ventos nas vestes amarelas.
Não ter nunca chegada
nunca optar por nada.
Ir andando pequeno sob a chuva
torto como um pé de maçãs.
Bom era entre botinas
tronchas pousar depois...
como um cão
como um garfo esquecido na areia.
Ir a terra me recebendo
me agasalhando
me consumindo como um selo
um sapato
como um bule sem boca...
Ser como as coisas que não têm boca!
Comunicando-me apenas por infusão
por aderências
por incrustações...
Ser bicho, crianças,
folhas secas!
Ir criando azinhavre nos artelhos
a carne enferrujada
desfeita em flor de ave, vocábulos, ícones.
Minhas roupas como um reino de traças.
Bom era
ser como o junco
no chão: seco e oco.
Cheio de areia, de formiga e sono.
Ser como pedra na sombra (almoço de musgos)
Ser como fruta na terra, entregue
aos objetos...
Originalmente publicado em: "Compêndio para uso dos pássaros", 1960.