A ceia sinistra
Poema de Murilo Mendes
1
Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar.
Eis a hora propiciatória, augusta,
A hora de alimentar os fantasmas.
? Quem vem lá, montado num trator de cadáveres,
Com uma grande espada para plantar no peito da Rússia.
Outros estendem bandeiras de todos os países,
Fazem uma cortina de névoa que esconde o cavaleiro andante:
O homem morre sem ainda saber quem é.
A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.
A terra chove suor e sangue.
As ondas mugem.
2
O tanque comanda o homem.
A alma oprimida soluça
Num ângulo de terror.
Alma antiquíssima e nova,
? Tua melodia onde está.
O pássaro, a fonte, a flauta,
A estrela, o gado manso te esperam
Para os batizares de novo.
Sentados à mesa circular
Aguardamos o sopro do dia.
3
Os mortos perturbarão a festa inútil.
? Quem lhes trouxe ternura e presentes - em vida.
? Quem lhes inspirou pensamentos e amores castos - em vida.
? Quem lhes arrancava das mãos a espada e o fuzil - em vida.
Agora eles não precisam mais de carinho ou de flores.
Agora eles estão libertos, vivos,
Pisando calmos sobre nossas covas.
Abancados à vasta mesa circular
Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos.
Fonte: "O Menino Experimental", Summus Editorial, 1979.
Originalmente publicado em: "Poesia Liberdade", Editora Agir, 1947.